segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Uma biografia de praias

A Menina não era rica, pobre também não. Podemos dizer que era remediada. Não teve tudo o que as suas amigas com mais posses tiveram, mas teve mais que a maioria das meninas que conhecia. Talvez o que merecesse! Decerto o que os seus pais acharam que merecia. Acima de tudo, tinha muito amor.
         Ao longo da sua vida viu o significado da palavra férias passar de um luxo para quem pouco ou nada fazia, mas algo de seu tinha, para um direito inalienável até para os que nunca nada fizeram e nunca nada tiveram de seu...
         Ir para a praia passou de remédio a moda e quase um direito. Mas cresceu na praia...não no sentido literal, mas pode contar a sua vida pelas praias que conheceu.


Num casebre junto ao mar
Franzina, bicosa e de apetite mínimo, cedo os pais se esforçaram para que fosse a banhos. Teria 2-3 anos. Já era Menina da vila...a aldeia já tinha ficado para trás e longe da sua vida. Desse tempo não restam memórias!
 Todos os anos se alugava uma casa/casebre a uma família de pescadores (seria a Tia Carolina? Acho que sim...só o Pai ou a Mãe se recordarão) que dela prescindia (onde passariam o verão???) para que a Menina e a Mãe (e muitos outros, a cada semana, quinzena, mês...), também ela pouco mais que uma menina, fossem a banhos na Zambujeira no mês de Julho ou Agosto??? ou Setembro???... não interessa. Antes de 8 de Setembro era, certamente, porque a Mãe nunca perdoaria (e continua a não perdoar) que se perdesse uma procissão da Senhora da Piedade, por fé confessa, por vaidade inconfessa: era e continua a ser dia de estrear roupa nova e mostrar a família aos milhentos primos e primas, parentes e compadres).
         Desses tempos as memórias da Menina são um fato de banho de tecido vichy (como se na família alguém soubesse o que isso era!!) vermelho e branco, cheio de elásticos a fazer tufos (e a memória foi tão forte que, já mãe, comprou um para as suas filhas) a que sucedeu um, também ele vermelho, com um folho de bolinhas brancas, do toldo que o Pai armava na praia com o pano de riscas verdes e brancas e lá ficava a temporada de 15 dias ... e que boa qualidade a do tecido! Ainda serviu para fazer de manta de piquenique, já as filhas tinha nascido, muitos anos depois...um quarto de século...e as praias da sua vida eram outras! E, depois, uma vaga memória da carroça do Tio Agricultor (ou seria uma camioneta de alguém conhecido???) transportar o colchão e a tralha mínima para os dias na praia: os tachos e pratos, os candeeiros e o fogão/fogareiro a petróleo.
          Na casa de uma divisão, com janela e porta, de telha vã, havia o leito de ferro e o lavatório com bacia e jarro a condizer, num esmalte marmoreado azulado, mesa pequena e cadeiras baixas de palha... hoje seria tradicional, naquele tempo era o que se podia pagar com muito esforço e horas de trabalho.
            Mais memórias?
           O fato de banho da Mãe, pudico, pesado, com um corte à frente que fazia uma espécie de saia, de forma para que os contornos mais íntimos do corpo não sobressaíssem...e que só aparecia depois da mãe tirar a bata escura com motivos florais discretos (um ano até foram bolas brancas em fundo preto porque estava de luto de alguém) ou o roupão de turco verde e pesado para ir à beira de água banhar a filha e banhar-se. O verde condizia com o tal fato de banho. Este tinha também bolas pretas e uns suportes plásticos (as caixas) para os seios, semelhantes a um escorredouro de plástico comprado na loja do chinês...o conforto da mulher não era a preocupação do fabricante, decerto. Para além disso, a Mãe levava um lenço na cabeça ou um chapéu e, imaginem, uns óculos de sol brancos...um luxo, mesmo uma leviandade, numa mulher casada e sem classe … era esposa/mãe de uma classe sem direito a sofisticações dessas e tinha, para isso, abdicado do direito a ser uma menina de vinte e poucos anos. O roupão de turco da Menina, com os bonecos do Franjinhas, como os dos gelados Rajá que se compravam naquela pensão do centro da Vila... mas que na praia ainda não haviam.
           As sestas (coisa horrível...ainda pior que comer...) e o medo do mar...ai o mar! A Mãe a obrigar a tomar banho porque fazia bem à saúde...mas qual saúde! As ondas, o frio, os dias de nevoeiro que se chamava maresia e tinha muito iodo e era muito bom para a saúde e … e... e... tudo acabava enrolado numa toalha verde, feita a condizer com o roupão da mãe, com umas franjas brancas, entre gritos, choros, muitas lágrimas, fugidas, lábios e dedos roxos. Um sofrimento!A roupa eram modelos exclusivos da modista lá da rua. Depois brincava na areia com o balde e a pá...e olhava com inveja (será que as crianças têm invejas?) para os brinquedos das outras crianças, na praia do Palheirão, que até tinham peneiras para a areia e forminhas ...mas tinha que se divertir a fazer bolos de areia com o que tinha....e eram horas de almoço = sofrimento e sesta = a tortura e voltar à praia ao fim da tarde... sempre com o chapéu de palha na cabeça!
          Ao fim de semana ( um ou dois, porque as estada nunca ultrapassava um mês e com grande esforço, de certeza!) vinha o Pai, que ficava, durante a semana, a trabalhar na mercearia da família, na motorizada que tinha sido um bom negócio, depois de ter usado o taxi. Não podia vir no autocarro da EVA, cujo o horário continua a ser igual há meio século, porque ao sábado era dia de trabalhar até ainda mais tarde … 9, 10, 11 horas da noite e houvessem clientes!
           E, como todos os dias, lá se ia de madrugada, aos olhos das gentes de hoje, para a praia. O calção azul do Pai, até ao umbigo de um tecido que nunca mais secava (como o do fato de banho da mãe) e camisola de alças em tecido perfurado chamado TV (não me perguntem porquê!!)...Mas o Pai sabia nadar!!! Tinha aprendido num pego e na ribeira, no monte onde tinha crescido, o Pomar, e que, um quarto de século mais tarde, se tornaria o monte das netas que não estavam ainda no horizonte desta família feliz, cuja labuta se centrava naquela Menina que era o fruto de um amor não muito usual entre duas pessoas com uma década de diferença e que perduraria para lá do meio século.
          Num tempo em que a estratificação social era algo aceite naturalmente, obviamente que o local a ocupar na praia não era qualquer um: não podia ser no lado do Palheirão, claro que não! Aí ficavam as famílias ricas e tradicionais (mesmo que não tivessem tostão, mas tinham nome...) de Odemira, com casa própria ou alugada ao ano. No lado da Igreja ficavam as gentes de São Teotónio, que a mãe conhecia tão bem mas de quem se distanciava, como quem se distanciava do passado … ficava-se na praia do meio, ao pé da ribeira, entre rochas... num limbo entre as origens da Mãe e ambição do que queria para a Filha.
E acabado o tempo estival, lá se voltava, a troxa na carroça do tio e começava mais um ano na rua que era tão grande que lá cabia o mundo e as brincadeiras de filha única podiam continuar... mas isso é outra história … outra vida!

Um pudim por uma menina 

         O início da escola primária foi um marco traumatizante para a Menina que até ali tinha vivido confinada à sua rua e às pessoas da rua, mas acima de tudo, confinada ao mimos da Mãe e do Pai … a escola foi uma intrusão, um choque … mas voltemos à praia: até aqui a escola teve as suas consequências.
         A época escolar coincide com a mudança para a casa nova ( reconstruída da família) e com novas vizinhas que viriam a ser determinantes na vida da Menina.
       Mas antes ainda a memória de uma estadia na praia com a Tia Mais Importante e a Prima Quase Irmã, o Primo Quase Irmão, o Primo Agricultor e o Primo Futuro Padrinho.
       À semelhança do já descrito, a Tia alugou a casa e foi para a praia com os sobrinhos. A Mãe não podia ir porque a construção da casa nova implicava poupança e tinha começado a trabalhar na loja com o pai (o pai também ajudava os pedreiros nas obras), por um lado, e, por outro, o pai já não queria ficar sozinho durante a semana e as mudanças para a casa nova estavam a decorrer.
         Esta Tia morava junto à linha de comboio, no interior do Alentejo … a Menina já lá tinha passado uns dias. Voltou lá só quando a filha mais velha foi estudar para Lisboa ... quase ao fim de meio século!
        Lá foi, entre o entusiasmo de brincar com os primos e as lágrimas de se separar do Pai e da Mãe. Foi divertido. Dormiam no chão, à noite contavam histórias (o Primo Agricultor tinha mesmo graça, mas era maroto e sabia coisas que a Menina não conhecia e palavras que nunca tinha ouvido … mas a Tia não se importava, era menos rígida que a Mãe nessas coisas, e a noite correu bem!).
       À falta de televisão (falta, não seria, porque em casa não havia....) as histórias eram acompanhadas com as sombras das figuras produzidas com as mãos nas paredes, à luz bruxuleante do candeeiro a petróleo … e o maroto do Primo abusava! Mas adormecer foi um sarilho. No outro dia, às oito da manhã lá estavam na praia: a alegria de tanta gente não cabia no casebre e foram jogar à bola para a praia dos meninos mesmo ricos (os meninos da família eram apenas uns ricos meninos). Foi uma invasão de campo, a areia molhada da maré da noite e o nevoeiro a cobrir o frio que os envolvia.
       Ao fim de dois dias a Menina já chorava com saudades do Pai e da Mãe. O Pai tinha saudades também e lembrou-se de vir de boleia, com um conhecido, ver a Menina. Até trouxe um pudim flan do Chinês, que a Menina tanto gostava. Já perceberam o que aconteceu...entre um pudim, a companhia dos primos, os dias de praia ou o voltar para a sua cama e para os mimos da Mãe (como eram boas as cócegas da mãe, ao final da tarde, em cima da cama, quando a menina despia a roupa e ficava só em cueca, porque o raio da casa nova era quente como a boca de um forno ... e como era macios os braços da mãe! Como perdura estas sensações no cérebro ao fim de meia vida vivida??? O cérebro é mesmo algo maravilhoso!), na companhia do Pai. A Menina não hesitou: fez uma birra que obrigou o pai a deixar o pudim e levar a Menina. A praia afinal não era assim tão importante! A Mãe achou que o pudim tinha sido um desperdício...que mais valia não o ter feito e o Pai ter poupado o dinheiro que tinha pago pela boleia... a Menina tinha perdido a hipótese de estar uma semana na praia e o bem que isso lhe teria feito. Afinal a praia era mesmo importante. E assim ficou o o Pai entalado entre as birras das mulheres da vida dele!

O autocarro verde e branco


A casa nova pronta, a loja nova a estrear, a Mãe a trabalhar mais tempo, a escola … bolas que os 6 anos foram cheios de novidades na vida da Menina. Até a empresa de camionetas Cândido Belo veio mudar os hábitos da família. Em vez de ir de armas e bagagens para a praia, agora podia ir-se todos os dias de autocarro e voltar. E lá iam: com um chapéu de praia, também novidade, que ficava de um dia para o outro na taberna da Prima da Mãe, lá iam com o farnel na cesta e as toalhas noutra cesta. Até era boa ideia: a comida era mais do agrado da Menina: ovo cozido, sandes feitas com papo seco (com “maminhas” nas pontas) fabricados na padaria ao cimo da rua do hospital e recheadas com ovo mexido ou linguiça embrulhadas em guardanapos de pano ou papel pardo, fruta e bolachas Maria com manteiga (ainda não haviam modernices de fiambres, queijos de barra, guardanapos de papel e caixas de plástico, vulgo "taparueres". Bebia-se água que ia em garrafa termos e Compal em latinhas, Sumol, Frisumo ou laranjada Cirel. A linguiça era da que ficava no óleo, nas panelas de esmalte desde o Inverno anterior até à próxima matança do porco das tias ou da avó. Iam de manhã e vinha à tarde, depois de um gelado comprado no quiosque que tinha aberto perto da paragem do autocarro, lá à beira mar. Nem sempre se ia … descansava-se a meio da semana e ao sábado porque esse era o dia de mais trabalho dos Pais.
        Muitas vezes ia com a a Rapariga afilhada do dono da fábrica do pão e a  que já era crescida. A mesma que lhe iria dizer como nasciam os bebés, coisa que muito ofendeu a Menina: então os bebés não vinham da França onde a tia estava? Não podia ser... nesse dia, deixou a Rapariga no meio dos círculos de cimento que haviam no lago dos patos do Jardim das Laranjeiras e veio a chorar para casa, contar à Mãe. A Mãe confirmou que era assim (coisa pouco comum numa mãe dessa época), mas a menina ficou tão ofendida que esteve uns tempos sem querer ver a Rapariga.
Também podia ir com outras vizinhas … a escola tinha permitido que a menina socializasse e agora já não se importava de a Mãe não estar presente.
          Esta coisa do autocarro até a levou, porque foi ao médico, a Portimão (onde vivia uma tia e onde comeu tantos gelados de cone de umas motorizadas com uma caixa com gelo que até ia desmaiando. Ficou roxa....) e comprou um biquini (último grito!!!) azul com florinhas e com uns calções com uma espécie de saia … e há também a recordação de um actualmente designado triquini, à época "biquini envergonhado" com uma argola no umbigo, de fundo branco, com uns motivos geométricos rosa e preto... mais tarde virá um fato de banho verde, de atar atrás do pescoço … mas aí já havia seios para esconder, aí pelos 9 – 10 anos, que nessas coisas a Menina foi precoce. Estes últimos comprados nas lojas de pronto a vestir que abriram na rua dos correios, a maior rua que a menina conhecia, porque foi a primeira onde foi sózinha, um dia fazer um recado à mãe, com uma nota de 20 escudos na mão...que responsabilidade! Nunca uma rua lhe pareceu tão grande. Ainda lá está...mas já não é “a maior do mundo”...




Quando os Verões azuis se tornaram de muitas cores até ficarem cinzentos
       
   Bem comportada e de família honesta e respeitada, a Menina tinha o privilégio de poder frequentar a casa da Grande Amiga que ficava no grande quintal de muros brancos, portão de ferro e caminho empedrado. Quando o Verão se aproximava a Grande Amiga e a sua mãe mandavam renovar o guarda roupa e punham a costureira da rua a trabalhar em quase exclusivo para elas com as toaletes novas para levarem para a praia. Tinham casa alugada ao ano, primeiro na Rua da Padaria, depois num chalet, atrás da Igreja.
        Era gente fina e de muito dinheiro, proprietários e comerciantes. Até tinham uma criada fardada, pouco mais velha que o irmão da Grande Amiga, só para cuidar dos meninos...mas um dia a Criada dos Meninos quis casar e largou a farda de quadradinhos azuis e brancos optando pelo amor de alguém e partiu para criar os filhos dela, farta, talvez de criar os dos outros...(nunca mais a Menina soube nada dela...).
        No verão, já em idade escolar, lá ia passar uma a duas semanas ou mais, com a Grande Amiga. E a vida mudava: iam para a praia, para o toldo que a família rica tinha alinhado com os das tias e primas da família rica, na praia do Palheirão. Podiam deixar as coisas na praia à hora do almoço e não havia preocupação: a Criada Quase Mãe, que tinha a idade da Mãe da Grande Amiga, fazia o almoço e tratava de tudo...até fazia a cama do quarto partilhado.
         Havia um grupo de amigos de férias grande, tomava-se banho, jogava-se à carta com a cabeça debaixo do toldo e o corpo ao sol.Pensava que se protegia o corpo a última novidade : o Creme Nívea da caixa azul, aquele a quem o cantor Marco Paulo atribui a sua pele sempre jovem e oleosa, por sinal. A par deste creme surgiram os pacotinhos de shampoo Sunsilk que o Pai vendia na loja e que libertaram a Menina dos ovos partidos na cabeça e da lavagem com água de nogueira para fortificar o seu fraco cabelo. E lá ia munida destas sofisticações para impressionar a Grande Amiga e mostrar que também tinha coisas únicas uma vez que não tinha bicicleta nem gira-discos (mas isso também era coisa do irmão da Menina e só se podia mexer às escondidas). A mãe da menina é que tinha estas ideias, tiradas da Crónica Feminina, porque a menina queria era brincar com as bonecas que Grande amiga tinha (a menina lá deixava a sua Lili dos cabelos azuis e a boneca grande de cabelos laranja que saiu nos furos que o pai vendeu. Com a Lili brincava, fazia roupas para ela, embora a maioria das vezes andasse despudoradamente nua...a outra era grande (quase do tamanho da Menina) e estava em cima da cama, a decorar, com a sua saia de alças preto e branco, camisa branca, sapatos pretos e soquetes brancas, direita e bem comportada, como a Menina costumava ser.
Sapatos? Que recordações dos sapatos tem a Menina, agora, no seu corpo de mulher madura? No verão usava sandálias modelo “sandália inglesa” brancas e compradas na feira de Maio. Também há a recordação de umas chinelas de enfiar no dedo azuis. Hoje seriam umas havaianas. Naquela época umas chinelas feitas num plástico que cheirava a borracha, cheiro que ainda permanece na memória.



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